quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Fresta

Ciclos. Como iniciá-los e quebrá-los, sem afundar o coração. A ambiguidade eterna do "sim" e do "não", e toda a força que estas palavras transmitem. Inspiram e derrotam na mesma medida. Um caminho que te lança adiante e te puxa para trás, ao mesmo tempo. A ida e a volta em perfeita sintonia.

Ensaiei muitas palavras para dizer. Rascunhei frases complexas, na tentativa de fazê-lo entender aquilo que eu mesma não desvendo. E por esta condição mesma, a desordem que me aflige, vou vivendo pela roda gigante da vida, em um sublime movimento de compartilhar duas grandes visões: debaixo, olhando para o céu. De cima, olhando para dentro.

Me desconheço. E há nisto também um desconhecido prazer. Um medo reconfortante de não se prever. O desinibir da vontade oculta no peito, que revela o novo, inexplorado. Me notar através do olhar desatento do outro, que conhece a superfície do que sou e só. Nestes momentos, inimagináveis, me reapresento para o mundo, com frescor, em reconstrução.

Dou dois passos para frente e os anulo, voltando dois para trás. Mas, já não sou a mesma, embora no mesmo lugar.

Sentada, fui deixada, mais uma vez, a sós com a minha solidão. Ali, naquele vão entre o que é e o que não é real, ouvi o recitar de versos que não eram meus. E houve nisto um irremediável pesar.  Estava pronta para mergulhar, sozinha, na escuridão. Padeci. Perdeu-se uma voz, ecoando sem lugar, construindo o seu singular exílio. Quis gritar: "eu, aqui, eu entendo esse par de versos!". Mas, aqueles não eram versos meus. E em silêncio permaneci, imóvel, sem reagir. Entendendo que o alvo não foi só eu quem errou.

O que há de errado nos ciclos, que não me permitem mais semear? Onde eu fui parar, que não me encontro? Fecho a porta, mas fica uma fresta de luz. Eu olho pela fechadura sem trancar com a chave. Fecho cortinas da janela, sabendo que o mais simples vento as fazem dançar no ar. Eu tento. Mas, algo em mim ainda quer voar. E me dói o "não", pois permaneço com asas.

Hoje, me olho, e escolho este silêncio, cujos gritos, só eu posso ouvir. E as palavras que dele emanam são grifadas somente na minha própria história. Mergulhei em um mar raso, em busca de profundidade, para descobrir que só eu é que a posso ter e encontrar. As minhas respostas me habitam, e só eu posso alcançar.

É o ir e voltar em perfeita sintonia. Dois passos para frente, e já me coloco novamente no mesmo lugar. Diferente, eu sei, com um novo jeito de olhar. Ainda eu, contudo. Sem respostas, cortando impulsos e fechando ciclos. Reconstruindo o meu próprio lar. Tirando a poeira, para me testemunhar.




Amanheceu

É uma tradição: todos os anos eu encerro ciclos na cidade em que eu cresci. Ainda novinha, sem dimensionar o valor que essa frase teria, colei na parede do meu antigo quarto, em uma cartolina: "amanheceu, é hora de voar". Era, ao mesmo tempo, um desejo, uma ordem, uma ambição. Sonhava em bater as minhas asas para longe, onde eu viveria, então, o meu verdadeiro destino. Hoje, mais cedo, cumprindo o meu ritual, olhando para esse céu, em mais um final de ano, eu soube: eu saí em busca daquilo que eu volto hoje aqui para encontrar. Volto não pela segurança de andar pelas mesmas ruas que sempre andei, não pela familiaridade dos cheiros ou lugares que já não conheço tão bem... Eu volto para reaprender a voar. Todas as vezes. E sempre que for necessário. Aqui esta a minha pista de vôo e de pouso. Onde me reencontro olhando para uma cartolina na parede do céu e pensando: "pois é, amanheceu... É hora de voar".