Alguns odiarão a maçaneta, porque ela fecha caminhos e obstrui passagens. Alguns a amarão, no entanto, porque nela fica a imagem da chave virada, abrindo a jornada adiante. Alguns odiarão a maçaneta, porque ela abre passagem a quem (ou aquilo) que queriam que ficasse. Alguns a amarão, no entanto, porque nela fica a imagem do chegar em casa, trancar a porta e descansar seguro. No fim das contas, as coisas, elas próprias, pouco dizem sobre o mundo. As pessoas são elas mesmas e suas circunstâncias. Girando as maçanetas, abrindo e fechando a vida.
quarta-feira, 20 de outubro de 2021
Não pise na restinga
“Nem sempre é fácil saber para qual direção a restinga poderá evoluir, ou mesmo se permanecerá estática. Afinal, tudo nela depende da forma da incidência do mar, das marés, dos ventos”. Que coisa! Talvez seja por isso que, embora a placa diga “restinga”, eu tenha conseguido ler: “sonhos”, “sentimentos”, “coração”.
Confissão
“Não procures, minha filha, no tempo o que é dado à Eternidade”, ele me disse. Estremeci, tamanha a força dessas palavras.
“Mencionastes, minha filha, que nascestes em Colatina. E noto que és descendente de italianos. Os seus bisavós, vindos de longe... trouxeram bens?” Eu lhe disse que não. “Trouxeram diplomas?”. Eu lhe disse que não. “Trouxeram ferramentas de trabalho?” Não, eu lhe repetia.E já nem me lembro do quanto eu neguei. Uma pausa se fez, no entanto, e de repente:
“Trouxeram riquezas?” Não hesitei: “não trouxeram, Padre”.
Ele sorriu. “Trouxeram, minha filha. Trouxeram o que lhes havia de mais valioso. Trouxeram a sua família, os seus. Trouxeram uma Madonna no bagageiro. E a certeza do ofício, jamais do trabalho”.
Me senti pequena. Pois era verdade. “Trouxeram a Eternidade, prescindiram do tempo. Não se esqueça”.
Fui para fora. Olhei ao redor. Registrei essa foto. Esta lua neste céu. Este vôo. O Templo sobre a rocha. Não, eu nunca esquecerei.
Even this afternoon
Duas frases me marcaram na última semana.
Virtuoso é reconhecer-se não virtuoso
Não saber reconhecer as próprias virtudes é tão menos ou pouco virtuoso que a própria soberba e vaidade. Revela, no mínimo, desatenção às próprias capacidades e a ausência de disposição em as colocar ao melhor serviço do outro. Ora, se recebo em minha casa alguém que muito estimo, sirvo com o meu melhor. Se não conheço, não sou capaz de oferecer. Se me envaideço e me encho de afetação aos elogios no que sou boa, a virtude se volta ao meu próprio umbigo, o que a desnatura por natureza. Se não sou capaz de reconhecer sozinha minhas próprias virtudes, provavelmente estarei inapta a fazer o mesmo com meus desvios e faltas. Serei escrava do mundo, portanto. Mimada. Me desprezarei com o desprezo dos outros. Me envaidecerei com os aplausos alheios. Eis a receita perfeita para infelicidade. Eis o caminho correto para se perder.
Água marinha
Eu acho que amar uma pessoa é um sentimento simples, que não precisa de adereços. Na verdade, quanto maiores os penduricalhos, menos aterrado ele esta.
Amor a gente planta na terra, é isso. E aí, cada semente dá uma árvore diferente, um fruto diferente… Essa é a beleza do amor.
Tudo isso pra dizer que nessa foto a gente tinha 19 anos. Quantos se passaram? Eu sempre aumento, mas dez eu garanto. Enfim, não importa tanto, porque até o tempo pode ser usado de enfeite.
Importa o dia ontem. As roupas no varal. O parquet no chão. É a nossa história que joga a gente pra frente! Do jeito que ela é, cheia desses detalhes.
A simplicidade dessa certeza. Esse amor que cabe em qualquer cenário, prescinde de adereços todos.
(São onze anos).
O Credo que não é recitado
É preciso viver uma vida magnânima, conversávamos João Henrique e eu, no carro, ontem. Também, assim, eu li no capítulo 7 do livro: uma vida sem justificativas, omissões e mesquinharias.
Eram seis da tarde. Ele me deixava em casa, na ida para o plantão da noite. Me contava como a profissão que havia escolhido o tinha colocado de frente com o momento derradeiro, do qual todos tentamos escapar. Falava como, ainda naquela noite, poderia dar a pior notícia para alguém que aguardava em agonia.
Me disse sobre o tipo de médico que desejava ser. Pois não bastaria ser médico, era preciso escolher qual. Falou como na balança da vida, tudo deveria ser sopesado com a morte, pois assim seria em algum momento que não poderemos prever. E as mesquinharias se revelariam como tais.
Terminou dizendo, pois chegávamos no meu prédio, que nunca conseguiu decorar a oração do Credo, porque o Padre da catequese o tinha traumatizado quando o obrigava a declamar nas aulas. Eu ri. Uma vida magnânima, era o que estava no meu coração. Agora e na hora da nossa morte. Amém.
Amigo X de Natal
Eu gostaria de falar algumas palavras, pois acho importante que nós resgatemos o sentido de nos reunirmos aqui hoje para celebrar o Natal, independente das crenças que cada um individualmente possui.
O que é o Natal? Natal é o encontro desses dois "deuses" antagônicos, ao quais o homem renuncia igualmente: a eternidade e o tempo. E esse encontro - eternidade e tempo - nos permite recriar, reviver e reinventar a nossa vida, porque nos relembra que existe esperança e redenção, aqui, nesse mundo.
Existe o perdão. Existe o amor. Existe a memória. Afinal, é justamente nessa data que sentimos a saudade das pessoas que nos deixaram.
Eu falava essa semana com João Henrique, que havia escutado uma frase que muito tinha me impactado: "quando a vida, esse desejo de viver, bater a nossa porta... precisamos abrir". Não podemos fazer como as hospedarias que negaram o repouso de Nossa Senhora, grávida de Cristo, e a destinou a tê-Lo em uma manjedoura, ao lado de animais.
É preciso abrir as portas da nossa morada para a vida.
Por isso, hoje, eu quero, em nome de nós todos, dedicar a nossa reunião, a nossa celebração, a Cristo, que desceu a nossa condição para sofrer e nos perdoar, remindo os nossos pecados com a sua própria dor. E gostaríamos que, antes que começássemos nosso amigo x, que fizéssemos na intimidade dos nossos corações, um momento de silêncio e oração. Que colocássemos nossas intenções desse novo ano perante Deus.