Eu uso a devoção como o meu domínio sobre o mundo. Como se, racionalmente, a única forma de me encontrar fosse "me despedir de mim". Tudo que eu escrevo, mais profundamente, é como se eu estivesse constantemente tentando me negar e despedir, abnegar das minhas inclinações egoístas, muito embora eu saiba que tudo reconduz a uma única sensação de pertencimento - a mim não, ao outro. Não quero usar palavras e construções difíceis. É que, também assim, as coisas se mostram para mim.
segunda-feira, 30 de março de 2020
Eu e o perdão no tempo
Estava escutando um homem dizer que o perdão jamais poderíamos a nós próprios dar. Jamais, por confusão entre sujeito e objeto e receptor, poderia o perdão existir intrinsecamente no mesmo ser. Pois, para o perdão, há a exigência da hierarquia. Aquele que o dá, o dá por ser maior naquilo que se pecou. Aquele que perdoa convida ao compartilhamento da ausente virtude. E nesta cadeia de atos, entre o maior e o menor, dobra-se o joelho sem contrapartida. É um tiro no escuro, solene, ao qual nos sujeitamos por pecar.
Há quantos "eus" na história, no entanto? Se o passado é eterno, como costumo pensar, existe, como existe hoje, alguém a quem fui no tempo que passou. E, se o perdão eu dou no hoje ao objeto do passado, também sou eu do passado a quem perdoo e recebo. Não há confusão intrínseca, se o passado me acompanha e marca, internamente, ele vive, também, fora de mim, porque eterno, não só para o que fiz comigo, mas, para o que ao outro eu infligi, sobretudo. Sobre isto que passou e permanece, paralelamente, por consequência do tempo que não é transitório, nesta diferença entre sujeitos reside a competência do perdão entre "eus".
Eu perdoo o eu que permanece, no presente, por estar no passado. E me comprometo a, na presença da imagem do erro constante, que nunca passa, olhar para este erro como um vitral, que não reflete mais somente a ausência de virtude, mas todas as cores que dela resultarão.
O meu eu, de hoje, perdoa o meu eu que existe, hoje, no passado. Há hierarquia. Senão unicamente temporal, mas, sobretudo, interpessoal, guardada na disparidade entre o que sou e o que fui.
domingo, 22 de março de 2020
quinta-feira, 12 de março de 2020
Disseram que eu deveria ter seguido um caminho certo. Que na moldura da vida, as cores, eram todas elas sérias, e, sendo assim, que a felicidade viria da rotina de enxergar sob as mesmas coisas, outras novas. Disseram que a abertura para vida viria com as escolhas que fazemos facilmente, que nos colocam no trilho do que é quisto no coração. Que as respostas eram fáceis, e, não as havendo, então, ou as perguntas estavam equivocadas, ou as respostas, elas próprias, eram 'não'. Que, afinal, sabemos com força o que nos habita, pois somos feitos. Estamos feitos, e encerrados. Buscar, por dentro, seria como enxergar a si no espelho, e, por um dado objetivo, completamente cognoscível, nos reconhecer. Disseram que o coração é dado a sentir, e, por desconhecer o arbítrio, muito pouco poderia escolher. Render-se a isto, seria, abdicar de poder, afinal, o conforto habita a rotina do que permanece no tempo. E jamais se desprende de algemas que a si impõe e de gaiolas que envolta de si se edificavam, só para que no fim da tarde, quando o sol estivesse se pondo, pudéssemos nos ouvir cantar. Que este canto, aliás, não seria jamais indício do choro minguante dos soluços que o voar impedido estaria a ecoar. Que asas eram coisas que só existiam na imaginação, que todo o voo era, em si mesmo, uma queda mal compreendida. E o chão, mais do que pista de decolagem, anunciava, com frieza, o fim desse cair. Disseram para esquecer os sonhos, ainda que a nós chegassem, de surpresa, durante o sono, e em nós ficassem, gratuitamente, sem justificativa, criando, na gente, raízes profundas, sob nenhuma terra. Que sonhar era infantilizar-se. Sub-rogar o riso por feridas vãs. E nesta terra, semear, era ato de rebeldia, porque o que tinha que nascer, estava escrito, e muito pouco dependia de nós.
Disseram que sofrer era amar. Que amar era calar. Que calar era ser forte. E ser forte era, com forjada ternura, no tato e no olhar, mentir. Mentir a doçura. Mentir a felicidade. Mentir o brilho. Mentir o viver. Ah, viver. Uma doce ilusão que se confundiu com a realidade das cores sérias das molduras das vidas que sorriam sem jamais terem sentido vontade. Como se buscar fosse perder, e lutar não estivesse, em verdade, tencionado ao caminhar utópico que ele próprio refutava.
Disseram que sofrer era amar. Que amar era calar. Que calar era ser forte. E ser forte era, com forjada ternura, no tato e no olhar, mentir. Mentir a doçura. Mentir a felicidade. Mentir o brilho. Mentir o viver. Ah, viver. Uma doce ilusão que se confundiu com a realidade das cores sérias das molduras das vidas que sorriam sem jamais terem sentido vontade. Como se buscar fosse perder, e lutar não estivesse, em verdade, tencionado ao caminhar utópico que ele próprio refutava.
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