sábado, 31 de outubro de 2020

Tire a poeira do medo, 

Revira as minhas gavetas, 

Muda a cor da parede do quarto que eu sonho,

Eu aquiesço!


É preciso abrir as cortinas da sala,

Pro sol me iluminar.

Tava escuro, mundo!

Abre as janelas, que eu quero ficar!


segunda-feira, 15 de junho de 2020

Em dois dias uma fase estará encerrada. Ou, como meu namorado tem me advertido: eu começo outra. É exatamente uma questão de perspectiva, de narrativa. Nesses dias finais, os sentimentos giram todos em torno do medo. Em todos os lugares que pude, afirmei o fracasso que viria, como se eu quisesse preparar os que amo para a frustração de ver a minha pior versão exposta. A de quem prometeu chegar ao cume, mas ficou pelo caminho. A de quem sonhou grande, mas fez pequeno. 

Não é ao outro que eu tento prevenir o fracasso, é a mim mesma, eu sei. A estante esta cheia de livros, lidos, marcados, grifados. Mas, meus olhos só enxergam os que não pude ler. O que faltou. O que falhou. Eu nunca estou pronta. Eu não sei o suficiente. Eu não treinei o suficiente.

Eu não fiz. Eu não fiz. Eu não fiz. Eu não sou. Eu não sou?

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Trilogia: o pôr do sol de sempre

A força da palavra. Que proferimos e escutamos. Que nos fazem no mundo, porque nos mostram perímetros, limites, fronteiras. E, tendo contorno, passamos a ter forma. E a existir. Diante desta força, há perigo? Quais palavras usar? Me pego pensando nisso, constantemente. Sobretudo, porque a autoridade que carregam e imprimem no mundo estão nos -sujeitos-. Ao dizermos quem somos, somos? E quando é o outro quem diz? Ainda em busca dessas respostas. O que sei é: nos mantenhamos alertas e vigilantes. A palavra que a nós é dita não tem o condão de mudar a realidade, de uma só vez, como mágica. Não, é quando ela age de mansinho que corremos maior perigo. Quando ela é sussurrada, reiterada, quando vai nos impregnando mansamente, quando nos permeia simbolicamente, quando nos deixamos sob seu domínio, oculto. É quando estamos sob seu governo que, então, estaremos imantados de toda sua força. Acreditaremos que somos o que a palavra diz. E sobre nós faremos este juízo, que nos assolará de vaidade ou desprezo.

No meu horizonte, de fato, tudo desperta muito, por dentro. Talvez esta seja eu, compensando em outras, o peso de algumas palavras. Medo, ansiedade, angústia, euforia, calma, fragilidade, revolta, indignação, quietude, fracasso, vergonha, reclusão. Brigida, afinal, qual é a palavra que -você- se diz?

terça-feira, 26 de maio de 2020

Poeira e papeis pelo chão

Eu estava olhando a noite, pela janela do quarto, sentada na minha escrivaninha. Ao redor havia poeira e bagunça, estava absolutamente tudo fora de lugar. Não havia métrica nenhuma nas coisas espalhadas pelo chão. Era, somente, confusão. Acredito muito que as coisas refletem como a gente anda, por dentro, e, talvez por isso, eu tenha passado a me identificar com o cenário deslocado de ordem, de forma que muito pouco me incomodava no caos. A noite, lá fora? Estava escuro, obviamente. E, também nisto, eu me encontrei.

Sal e limão e tudo de novo - Parte 2

"Oi. Sou eu. Existe alguma forma da gente sair daqui, tipo, agora? Não espero que a gente vá, de fato, para algum outro lugar. Mas, sei que se quisermos, podemos sair". Essas foram as primeiras palavras que eu disse, depois de um longo período olhando para os olhos dele, ainda assimilando estarmos de frente um para o outro, depois de tanto tempo. Como de costume, ele me respondeu com um sorriso, daqueles que os olhos sorriem junto, e até mais que os lábios. A minhã mão direita ainda estava na mão dele, de modo que ele somente teve que entrelaçar os dedos nos meus e se colocar a andar, abrindo espaço por entre as pessoas. Eu seguia fielmente os seus passos, algo que eu já havia feito, em geral, também, na vida. Aquela cena se comportou perfeitamente como uma metáfora do que haviam sido os nossos anos juntos. E como eu deseja exatamente isto de volta. 

Me lembro muito bem de não ter olhado para o lado em nenhum momento. Não queria perder um só segundo daquele caminho, onde tudo que eu tinha que fazer era confiar nele. A camisa que ele vestia era branca e a pele dele estava morena do sol. Me lembro de seguir hipnotizada pela imagem das suas costas na minha frente. E da nuca, tão acima dos meus olhos. Ele estava mais forte, desde a última vez que nos encontramos e eu não deixava de pensar no que ele acharia de mim, das mudanças todas pelas quais eu havia passado, inclusive aquelas que eu mesma não teria notado. O meu cabelo estava mais escuro, a minha pele mais clara, eu já não carregava comigo o vermelhinho que o sol deixava nas minhas bochechas, de quando tinha dezoito anos. A verdade é que eu já não ia para a praia como antes. E nem mantinha mais as mesmas manias que ele detestava adorar. Ainda assim, naqueles instantes, seguindo os seus passos com a minha mão dada à ele, eu me senti de volta a quem eu era. E me lembrei de como havia leveza naquela menina.

Ele ainda não havia falado nada. Tudo o que eu tinha era um sorriso e mãos dadas. Era suficiente. Mas, a medida que chegávamos perto da saída, eu fui ficando cada vez mais apreensiva. Decidi que não abriria o diálogo, de novo. Seria a vez dele. Voltamos para a antessala com a moça dos cabelos avermelhados. A entrada era, também, a saída. E justamente disto era que eu tinha medo. Foi exatamente isto que tinha se passado com nós dois. O que tinha feito com que eu me apaixonasse por ele, também tinha sido o que nos afastou. O que eu amei, foi o que eu odiei. A entrada foi a saída, de nós. E, do mesmo modo que a caminhada tinha sido uma metáfora, não podia deixar de pensar que, também, esta seria uma. Com todos estes pensamentos na cabeça, sequer percebi que já havíamos percorrido todo o pequeno trajeto. As coisas não tinham mudado tanto assim.

Saímos para a rua. Senti frio, afinal, já era de madrugada. Mexi na minha bolsa, em busca do meu celular. Estava me sentindo confusa e perdida, um pouco ridícula e arrependida. Acredito que o meu incômodo tenha sido notado, afinal, nada sobre mim o escapava. E, pondo um fim naquela breve agonia, ele disse: "o meu carro esta na rua debaixo, podemos ir pra onde você quiser". E manteve os olhos sobre os meus. Não desviou, sequer piscou. Permaneceu ali, vasculhando o que eles poderiam lhe dizer. Talvez ele tenha lido os meus pensamentos, não sei. A única coisa que habitava a minha mente era a incredulidade de o ter em minha frente. Os olhos. Justo eles, daquela cor do entardecer que eu conhecia de cor.

Ele sorriu, de novo e ternamente. E pude sentir o peso de todas as decisões que tomamos, no meu coração. Foi o orgulho que nos separou? Foram os sonhos, irreais? Quantas escolhas erradas fizemos? Por que eu sentia vergonha? Por que eu tinha vontade de fugir dali, se estar ali foi o que me fez sair de casa, em primeiro lugar? Ele disse que poderíamos ir para onde eu quisesse. Ora! Por que ele simplesmente não me levou? Por que eu deveria dizer, escolher? Teria sido essa, então, a nossa derrota. Senti, de novo, o peso daquele amor. Vivi em segundos aquela história, da qual um dia eu quis partir. O que, afinal, eu queria, estando ali? "Eu vou embora", foi o que respondi. Ele consentiu. Respirou fundo, como se estivesse cansado, frustrado, porém não surpreso. Abaixou os olhos, olhou para a calçada. Respirou novamente. E a cada respiração, meu corpo desfalecia. Seus olhos se pousaram, novamente, nos meus. E perguntou, não com rudez: "Depois de todos esses anos, já não foi isso que você fez?". 

Senti em mim o seu pesar. Ele estava certo. Tudo o que eu fiz, nos cinco anos que nos separaram, foi partir. Apesar disso, nós estávamos de novo ali, no frio, no escuro da noite, na rua. Não havia o que responder. Qualquer coisa que eu dissesse seria nos ferir, ainda mais. Fechei meus olhos, recolhi meus lábios, tentei segurar o choro, que me escapou em uma lágrima, quente, mesmo assim. Vendo a minha reação, "podemos ir para um lugar que nos lembre de nós dois", foi o que ele falou. Na minha cabeça a resposta era clara "esse lugar é qualquer lugar. Sempre e tudo me lembra de nós dois". Porém, não disse. Por medo, sobretudo. Quem era ele, ali? Afinal, foram cinco anos. E em cinco anos tudo, absolutamente tudo, muda. E, por isso, era verdade que também nós havíamos mudado. Foram alguns segundos em silêncio. E, como era de ser, ele já não me olhava mais, se sentindo ferido pelo tempo que o deixei exposto, sem resposta. 

Permaneci interpretando a minha objeção. Sabia de tudo que me levou para longe, no passado. Como podia eu, no entanto, sentir o inverso? Sentir que tudo que ele havia me feito foi me amar? O seu erro foi ter me amado do jeito que eu não queria ser amada. E, ainda assim, eu queria, mais do que tudo, sentir de novo aquele amor. Sentir de verdade, sentir a pele, sentir os lábios, os cílios nos meus.  Sentir o modo como ele conduzia a nossa vida, sem pedir a minha opinião. Eu costumava a atravessar a rua sem olhar para os lados, quando estava com ele, pois sabia que ele já cuidara de tudo. Levei meus olhos em direção ao alto de seu rosto. Coloquei a mão no seu peito, bem em cima do coração. Levantei os pés para lhe alcançar. Encostei o meu corpo no dele, que se apoiava na parede de uma loja qualquer. E, então, completamente entregue, trancei as nossas mãos direitas e disse: "podemos sim. Podemos ir para um lugar que nos lembre de nós dois".

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Sal e limão e tudo de novo - Parte 1

Eu entrei naquele clube, sozinha, atrás dele. Eu sabia, antes mesmo de sair de casa, que eu o encontraria ali. Passei pelos guichês de entrada, para fazer meu registro. Entreguei a minha carteira de identidade, mas, a verdade, é que eu mal me reconhecia naquela foto. Já estava tão distante da menina que sentou em frente ao japonês do centro comercial para o retrato 3x4. Já havia tão pouco dela em mim. Aguardei, não estava impaciente. Alguns segundos depois, a minha entrada foi liberada. Uma moça de cabelos avermelhados carimbou no meu pulso o símbolo do lugar, fluorescente, e o segurança atrás dela abriu a porta para que eu entrasse. A música que tocava, antes abafada, rapidamente invadiu a antessala, e as luzes deram lugar ao cenário escuro. Dei o primeiro passo e entrei, sentindo a porta se fechar atrás de mim. 

Me lembro muito bem de ter sentido frio. E de ter parado ali, no vão da entrada do clube, olhando tudo ao meu redor. Do lado direito já podia notar um casal, conversando, se conhecendo. Permaneci parada por instantes que não saberia precisar. Fui esbarrada por meninas que passavam, em fila, em direção ao banheiro, que ficava na direção oposta à pista de dança. Logo à minha frente havia o bar, com pessoas indo e vindo, se espremendo para comprar uma bebida. Decidi que seria aquele o meu primeiro destino, e me lancei naquela direção. Fui criando passagem por entre homens e mulheres, sentindo, a cada ultrapassagem, um pouco de arrependimento por estar ali. O fato, no entanto, era que ainda que tudo desse errado, eu estava vazia por dentro, e completamente machucada, sem saber como me preencher. Portanto, mesmo que eu soubesse desde o princípio que todo aquele barulho, aqueles desconhecidos, a euforia transitória e efêmera daquele ambiente não me preencheriam de forma alguma, eu os usava como um disfarce, como uma distração para a mente. Algo de concreto ao que eu poderia colocar a minha atenção para sentir.

Todos esses pensamentos foram construídos no percurso que fiz até o bar. Tento me lembrar da música que estava tocando, mas o esforço é em vão. Eu me sentia em câmera lenta, não estava em completo discernimento. Consegui encontrar um espaço na bancada e, para a minha surpresa, fui logo atendida pelo rapaz que me perguntava o que eu desejava beber. Por alguns segundos eu me lancei a fitar aquele olhar, a mão estendida em minha direção, a espera pela minha resposta. Eu reconhecia o cansaço naqueles olhos, no arfar pesado da respiração. Já eram duas da madrugada, e o mundo continuaria na manhã seguinte, sem dúvidas. Eu respondi: duas doses de tequila. Ele sorriu, consentindo, e logo em seguida buscou a máquina do cartão. Paguei, e ele logo se pôs a preparar a bebida. Sal e limão já estavam na minha frente quando ele voltou com a garrafa e os dois copos. Me serviu o líquido e perguntou se eu gostaria que ele tirasse uma foto ou filmasse enquanto eu bebia. Olhei para ele, com um sorriso diferente nos lábios e respondi que, naquela noite, seria melhor que nem eu mesma soubesse que estava ali. Ele entendeu perfeitamente, gargalhou em meio ao barulho, de modo que sequer ouvi a sua voz, e me deixou para atender os demais.

Coloquei o sal no dorso da mão, depois a levei à boca. Com os lábios já salgados, bebi o primeiro copo, e logo em seguida, o limão. O ardor que eu sentia justificava a minha dor. No amargo descendo pela garganta eu me reconhecia. Havia um pouco de mim e de quem eu andava sendo naquelas sensações. Me eram familiares, razão pela qual eu não as repelia, ao contrário, me deixava sentir a bebida a cada milímetro que percorria no meu corpo. Senti minha pele se arrepiar por inteiro, muito possivelmente, também, pelo frio que pairava lá dentro, que me fazia pensar, sobretudo, o quanto exposta eu estava com aquele vestido preto de alças finas e cetim. Os cabelos estavam lisos naquela noite e me encarreguei de passar cuidadosamente um batom vinho, como se naquela cor eu pudesse encontrar alguma força. Já era hora de beber a segunda dose. Começaria a preparação do ritual novamente, quando, ao lado, uma voz à minha direita se projetou para o rapaz que havia me atendido antes, pedindo, para si também, uma dose como a minha.

Não tive coragem de olhar para o lado e levantar o meu rosto para enxergar quem estava ali. Embora eu conhecesse com precisão o tom daquela voz. O ritmo particular daquela fala. A intimidade expressada na referência a mim. A altura bem acima da minha. A imponência do corpo. Eu dizia em pensamento para mim mesma que não, não permitiria me enganar tão facilmente pela própria mente fantasiosa. Me punia dizendo que eu parecia uma criança com o coração batendo daquela forma, que as mãos não tinham razão nenhuma para estarem tremendo. Meu corpo estava dormente, os dedos formigavam. Eu paralisei. Congelei completamente. Meus olhos seguiam o rapaz do outro lado da bancada do bar sem perder nenhum dos seus movimentos, abrindo e levantando a garrafa, cortando o limão, preparando o sal. Ainda assim, não virei meu rosto para encarar quem eu tentava me convencer de que não estaria ali. Talvez eu não pudesse suportar nenhum dos cenários, fosse ou não fosse ele. Eu via que ele me olhava, por completo. E, naqueles segundos, onde eu pude reparar em tudo ao meu redor, sem sequer me mover, eu me convenci de quão errada eu estava por ter me arriscado tanto.

E então, no balcão, ao lado do meu copo, um outro foi colocado. Olhando para o atendente, vi que ele sorriu novamente, como que se estivesse me dando o aval de que a hora havia chegado. Eu olhava diretamente para os seus olhos, imóvel e ofegante. Não sei bem o que se passava em sua cabeça, mas isto pouco me interessava, na verdade. Abaixei os olhos, fitei o meu copo e ensaiei os primeiros movimentos para beber a segunda dose. Absolutamente tudo passou pela minha cabeça. Como eu poderia me deixar estar assim, completamente tomada de pavor e medo? Eu tinha que reagir. Afinal, apesar de tudo, eu sabia quem eu era. Eu estava perdida, mas ainda assim, eu sabia quem eu era. Decidi que beberia aquela dose e sairia dali. Iria embora. Levei a mão esquerda ao balcão para colocar o sal e, no momento em que faria o mesmo movimento com a mão direita, senti outras mãos nela. Senti os dedos dele se entrelaçando aos meus, fazendo com que a minha mão ficasse guardada na dele, tão maior que a minha. Me lembro de ter fechado os olhos, indefinidamente. E de sentir um empurrão vindo do aglomerado de pessoas atrás de mim. Eu precisava me virar e encarar aquele olhar. E foi isto que eu fiz.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Concerto da mente,
Conserto da mente. 
Sinfonia ou estrago? 
Perfeição composta pelo descompasso dos poetas esquecidos.

E quem há de lembrar de tantas sílabas escritas e cantadas? 
E quem há de lembrar dos poetas das estradas?


Volto da guerra e me entrego 
Ao suspiro no final do dia.
Volto da guerra com os olhos encharcados, 
Os braços soltos, a boca seca. 

Volto da guerra pra me lamentar, 
Porque ela esta dentro de mim. 
É a mente em tempos de guerra.
Iminência do fim?


As respostas das perguntas infantis se tornaram filosofias. 
As perguntas sempre foram. 
Mas, em apuros todos choram. 
Todos devaneiam. Todos sonham. 

Em apuros todos amam. 
E há aqui uma saída, então. 
Uma saída perigosa, confesso. 
Saída e só, sem volta. 


E aí, voltam-se os poetas, 
Que se voltam para dentro 
E observam com clareza 
Os lados do jogo. 

E escrevem na esperança de se transbordarem. 
E a guerra que mora dentro da gente 

Vai embora deixando poemas...
Que serão esquecidos... 

Pois uma guerra demanda muitas sílabas e canções. 
Uma guerra estraga a mente, uma guerra aperfeiçoa a mente. 
O concerto é conserto. 
Poema é a vida que transborda. 

segunda-feira, 30 de março de 2020

Conversas internas

Eu uso a devoção como o meu domínio sobre o mundo. Como se, racionalmente, a única forma de me encontrar fosse "me despedir de mim". Tudo que eu escrevo, mais profundamente, é como se eu estivesse constantemente tentando me negar e despedir, abnegar das minhas inclinações egoístas, muito embora eu saiba que tudo reconduz a uma única sensação de pertencimento - a mim não, ao outro. Não quero usar palavras e construções difíceis. É que, também assim, as coisas se mostram para mim.

Eu e o perdão no tempo

Estava escutando um homem dizer que o perdão jamais poderíamos a nós próprios dar. Jamais, por confusão entre sujeito e objeto e receptor, poderia o perdão existir intrinsecamente no mesmo ser. Pois, para o perdão, há a exigência da hierarquia. Aquele que o dá, o dá por ser maior naquilo que se pecou. Aquele que perdoa convida ao compartilhamento da ausente virtude. E nesta cadeia de atos, entre o maior e o menor, dobra-se o joelho sem contrapartida. É um tiro no escuro, solene, ao qual nos sujeitamos por pecar.

Há quantos "eus" na história, no entanto? Se o passado é eterno, como costumo pensar, existe, como existe hoje, alguém a quem fui no tempo que passou. E, se o perdão eu dou no hoje ao objeto do passado, também sou eu do passado a quem perdoo e recebo. Não há confusão intrínseca, se o passado me acompanha e marca, internamente, ele vive, também, fora de mim, porque eterno, não só para o que fiz comigo, mas, para o que ao outro eu infligi, sobretudo. Sobre isto que passou e permanece, paralelamente, por consequência do tempo que não é transitório, nesta diferença entre sujeitos reside a competência do perdão entre "eus".

Eu perdoo o eu que permanece, no presente, por estar no passado. E me comprometo a, na presença da imagem do erro constante, que nunca passa, olhar para este erro como um vitral, que não reflete mais somente a ausência de virtude, mas todas as cores que dela resultarão.

O meu eu, de hoje, perdoa o meu eu que existe, hoje, no passado. Há hierarquia. Senão unicamente temporal, mas, sobretudo, interpessoal, guardada na disparidade entre o que sou e o que fui.

domingo, 22 de março de 2020

Quando eu sinto saudade, vó, eu espero a noite chegar, saio para a rua e olho pro céu, pra te ver brilhar.

quinta-feira, 12 de março de 2020

Disseram que eu deveria ter seguido um caminho certo. Que na moldura da vida, as cores, eram todas elas sérias, e, sendo assim, que a felicidade viria da rotina de enxergar sob as mesmas coisas, outras novas. Disseram que a abertura para vida viria com as escolhas que fazemos facilmente, que nos colocam no trilho do que é quisto no coração. Que as respostas eram fáceis, e, não as havendo, então, ou as perguntas estavam equivocadas, ou as respostas, elas próprias, eram 'não'. Que, afinal, sabemos com força o que nos habita, pois somos feitos. Estamos feitos, e encerrados. Buscar, por dentro, seria como enxergar a si no espelho, e, por um dado objetivo, completamente cognoscível, nos reconhecer. Disseram que o coração é dado a sentir, e, por desconhecer o arbítrio, muito pouco poderia escolher. Render-se a isto, seria, abdicar de poder, afinal, o conforto habita a rotina do que permanece no tempo. E jamais se desprende de algemas que a si impõe e de gaiolas que envolta de si se edificavam,  só para que no fim da tarde, quando o sol estivesse se pondo, pudéssemos nos ouvir cantar. Que este canto, aliás, não seria jamais indício do choro minguante dos soluços que o voar impedido estaria a ecoar. Que asas eram coisas que só existiam na imaginação, que todo o voo era, em si mesmo, uma queda mal compreendida. E o chão, mais do que pista de decolagem, anunciava, com frieza, o fim desse cair. Disseram para esquecer os sonhos, ainda que a nós chegassem, de surpresa, durante o sono, e em nós ficassem, gratuitamente, sem justificativa, criando, na gente, raízes profundas, sob nenhuma terra. Que sonhar era infantilizar-se. Sub-rogar o riso por feridas vãs. E nesta terra, semear, era ato de rebeldia, porque o que tinha que nascer, estava escrito, e muito pouco dependia de nós.

Disseram que sofrer era amar. Que amar era calar. Que calar era ser forte. E ser forte era, com forjada ternura, no tato e no olhar, mentir. Mentir a doçura. Mentir a felicidade. Mentir o brilho. Mentir o viver. Ah, viver. Uma doce ilusão que se confundiu com a realidade das cores sérias das molduras das vidas que sorriam sem jamais terem sentido vontade. Como se buscar fosse perder, e lutar não estivesse, em verdade, tencionado ao caminhar utópico que ele próprio refutava.

Tenho me colocado em novos lugares, na esperança de sentir, também, novas coisas. Mas, como sentir algo novo se o que sentimos vem de dentro e dentro é um lugar que não alimento? 

domingo, 26 de janeiro de 2020

Ctrl+T+Del

Acabo de selecionar tudo que tinha há pouco escrito e apagar. Não pensei duas vezes. A música anterior acabou, a nova chegou, e tudo o que aqui estava deixou de fazer sentido. Na vida, tenho, também, muitas coisas por deletar. Talvez já o tenha feito, sem me dar conta. A decisão é necessária, no entanto, a ratificação do que é tácito. Não hesitarei. Ctrl+T+Del, e, como num passe de mágica, me liberto de angústias que já quase não sinto mais. De amizades que há muito deixaram de ser. De dores que já nos encarnam, a ponto de sumirem. Ou, a ponto de não conseguirmos as distinguir. Enfim. É tudo mesmo uma questão de sim e de não. A gente roda pela ciranda da vida sem querer enxergar que em todo o parque há a decisão inaugural. Que a gangorra somente desatina com o primeiro impulso. No balanço, é preciso, antes dos pés no ar, dos pés no chão, fazendo força. Para trás, ou para frente, primeiro, não importa. Em algum momento, você vai ter passado pelos dois lugares, necessariamente. É bonito que seja assim. De todo modo, subindo as escadas do escorregador para, logo em seguida, descer; ou girando sem parar no carrocel; é tudo, sempre, escolher. Escrever, selecionar, apagar. Colocar novas palavras no lugar. Trocar o que antes fazia sentido, e deixou, pelo o que faz. E, acreditar com todas as forças que durará. Até que tudo deva ser reposicionado, novamente. No mundo onde tudo anda, não andar não é ficar para trás. Não andar é escolher, simplesmente, ficar - o advérbio vem com o referencial, somente. Para alguns, a vida é maratona. Para outros, é velocidade. Para outros, é revezamento. Ou, pode ser, mesmo, com obstáculos. Andar ou ficar, é sempre uma questão de perspectiva. 

Ctrl+T+Del e talvez eu tenha feito a escolha certa em apagar. Jamais saberemos, no entanto, pois se foi junto com o ato de apagar aquilo a que ele se destinava.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Me sento aqui, revisando tudo o que eu acredito que sei.
Eu não quero mais escrever versos tristes.

No capô do carro, um pássaro azul e verde


Talvez poucos carreguem, no coração, um pássaro azul. No meu caso, ele é azul e verde. De toda forma, o que importa é que o trago no peito. E, agora, ao contrário de Charles, todos saberão que ele se encontra por aqui, dentro.

Mais do que no vidro do meu carro, ele pousou em mim, quando, me recusando a saltar, eu olhava à minha frente, pensando em nada e tudo ao mesmo tempo, tentando colocar em perspectiva a estrada, percorrida e a percorrer.

Tomei o seu pouso como uma mensagem (e assim faço com muitas coisas na vida) pois, no capô do carro, ele se demorou. Sem pressa, talvez porque eram seis e dez da manhã, e o vento da alvorada ainda carregava o fim da chuva da madrugada, do fresco do amanhecer. Sem medo, talvez porque confie nas suas asas, e por saber que poderá as bater sempre que se sentir inseguro, se dê o luxo da experiência e do explorar.

No fim das contas, foi isso mesmo que ele fez: voou. E eu, que nunca o quis guardado como um pacto secreto do meu coração, permiti a sua vida livre e o seu canto (não só quando estão todos ainda a dormir). Toda essa experiência, que me proporciona estes momentos de conexão, com Deus, e instalação da narrativa da minha vida nesta - única - realidade, me convence de que é suficiente - e uma dádiva - estar aqui. De que há muito para ver, sentir e fazer.

Engraçado, por fim, que ao digitar esse mini-enredo, por vezes bati na tecla do jogo da velha (#), e nela, prontamente, já se apresentava Bukowski como sugestão. Talvez os algoritmos tenham, mesmo, dominado as nossas vidas. Mas, prefiro ainda acreditar que guardamos domínio sobre muitas outras coisas. Por ter esta fé, para o meu pássaro azul e verde, eu abro as janelas.