terça-feira, 26 de maio de 2020

Sal e limão e tudo de novo - Parte 2

"Oi. Sou eu. Existe alguma forma da gente sair daqui, tipo, agora? Não espero que a gente vá, de fato, para algum outro lugar. Mas, sei que se quisermos, podemos sair". Essas foram as primeiras palavras que eu disse, depois de um longo período olhando para os olhos dele, ainda assimilando estarmos de frente um para o outro, depois de tanto tempo. Como de costume, ele me respondeu com um sorriso, daqueles que os olhos sorriem junto, e até mais que os lábios. A minhã mão direita ainda estava na mão dele, de modo que ele somente teve que entrelaçar os dedos nos meus e se colocar a andar, abrindo espaço por entre as pessoas. Eu seguia fielmente os seus passos, algo que eu já havia feito, em geral, também, na vida. Aquela cena se comportou perfeitamente como uma metáfora do que haviam sido os nossos anos juntos. E como eu deseja exatamente isto de volta. 

Me lembro muito bem de não ter olhado para o lado em nenhum momento. Não queria perder um só segundo daquele caminho, onde tudo que eu tinha que fazer era confiar nele. A camisa que ele vestia era branca e a pele dele estava morena do sol. Me lembro de seguir hipnotizada pela imagem das suas costas na minha frente. E da nuca, tão acima dos meus olhos. Ele estava mais forte, desde a última vez que nos encontramos e eu não deixava de pensar no que ele acharia de mim, das mudanças todas pelas quais eu havia passado, inclusive aquelas que eu mesma não teria notado. O meu cabelo estava mais escuro, a minha pele mais clara, eu já não carregava comigo o vermelhinho que o sol deixava nas minhas bochechas, de quando tinha dezoito anos. A verdade é que eu já não ia para a praia como antes. E nem mantinha mais as mesmas manias que ele detestava adorar. Ainda assim, naqueles instantes, seguindo os seus passos com a minha mão dada à ele, eu me senti de volta a quem eu era. E me lembrei de como havia leveza naquela menina.

Ele ainda não havia falado nada. Tudo o que eu tinha era um sorriso e mãos dadas. Era suficiente. Mas, a medida que chegávamos perto da saída, eu fui ficando cada vez mais apreensiva. Decidi que não abriria o diálogo, de novo. Seria a vez dele. Voltamos para a antessala com a moça dos cabelos avermelhados. A entrada era, também, a saída. E justamente disto era que eu tinha medo. Foi exatamente isto que tinha se passado com nós dois. O que tinha feito com que eu me apaixonasse por ele, também tinha sido o que nos afastou. O que eu amei, foi o que eu odiei. A entrada foi a saída, de nós. E, do mesmo modo que a caminhada tinha sido uma metáfora, não podia deixar de pensar que, também, esta seria uma. Com todos estes pensamentos na cabeça, sequer percebi que já havíamos percorrido todo o pequeno trajeto. As coisas não tinham mudado tanto assim.

Saímos para a rua. Senti frio, afinal, já era de madrugada. Mexi na minha bolsa, em busca do meu celular. Estava me sentindo confusa e perdida, um pouco ridícula e arrependida. Acredito que o meu incômodo tenha sido notado, afinal, nada sobre mim o escapava. E, pondo um fim naquela breve agonia, ele disse: "o meu carro esta na rua debaixo, podemos ir pra onde você quiser". E manteve os olhos sobre os meus. Não desviou, sequer piscou. Permaneceu ali, vasculhando o que eles poderiam lhe dizer. Talvez ele tenha lido os meus pensamentos, não sei. A única coisa que habitava a minha mente era a incredulidade de o ter em minha frente. Os olhos. Justo eles, daquela cor do entardecer que eu conhecia de cor.

Ele sorriu, de novo e ternamente. E pude sentir o peso de todas as decisões que tomamos, no meu coração. Foi o orgulho que nos separou? Foram os sonhos, irreais? Quantas escolhas erradas fizemos? Por que eu sentia vergonha? Por que eu tinha vontade de fugir dali, se estar ali foi o que me fez sair de casa, em primeiro lugar? Ele disse que poderíamos ir para onde eu quisesse. Ora! Por que ele simplesmente não me levou? Por que eu deveria dizer, escolher? Teria sido essa, então, a nossa derrota. Senti, de novo, o peso daquele amor. Vivi em segundos aquela história, da qual um dia eu quis partir. O que, afinal, eu queria, estando ali? "Eu vou embora", foi o que respondi. Ele consentiu. Respirou fundo, como se estivesse cansado, frustrado, porém não surpreso. Abaixou os olhos, olhou para a calçada. Respirou novamente. E a cada respiração, meu corpo desfalecia. Seus olhos se pousaram, novamente, nos meus. E perguntou, não com rudez: "Depois de todos esses anos, já não foi isso que você fez?". 

Senti em mim o seu pesar. Ele estava certo. Tudo o que eu fiz, nos cinco anos que nos separaram, foi partir. Apesar disso, nós estávamos de novo ali, no frio, no escuro da noite, na rua. Não havia o que responder. Qualquer coisa que eu dissesse seria nos ferir, ainda mais. Fechei meus olhos, recolhi meus lábios, tentei segurar o choro, que me escapou em uma lágrima, quente, mesmo assim. Vendo a minha reação, "podemos ir para um lugar que nos lembre de nós dois", foi o que ele falou. Na minha cabeça a resposta era clara "esse lugar é qualquer lugar. Sempre e tudo me lembra de nós dois". Porém, não disse. Por medo, sobretudo. Quem era ele, ali? Afinal, foram cinco anos. E em cinco anos tudo, absolutamente tudo, muda. E, por isso, era verdade que também nós havíamos mudado. Foram alguns segundos em silêncio. E, como era de ser, ele já não me olhava mais, se sentindo ferido pelo tempo que o deixei exposto, sem resposta. 

Permaneci interpretando a minha objeção. Sabia de tudo que me levou para longe, no passado. Como podia eu, no entanto, sentir o inverso? Sentir que tudo que ele havia me feito foi me amar? O seu erro foi ter me amado do jeito que eu não queria ser amada. E, ainda assim, eu queria, mais do que tudo, sentir de novo aquele amor. Sentir de verdade, sentir a pele, sentir os lábios, os cílios nos meus.  Sentir o modo como ele conduzia a nossa vida, sem pedir a minha opinião. Eu costumava a atravessar a rua sem olhar para os lados, quando estava com ele, pois sabia que ele já cuidara de tudo. Levei meus olhos em direção ao alto de seu rosto. Coloquei a mão no seu peito, bem em cima do coração. Levantei os pés para lhe alcançar. Encostei o meu corpo no dele, que se apoiava na parede de uma loja qualquer. E, então, completamente entregue, trancei as nossas mãos direitas e disse: "podemos sim. Podemos ir para um lugar que nos lembre de nós dois".

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